Relato da 3a visita à São Remo (04 de outubro de 2017)

Por Joice Genaro Gomes

- Para onde estamos indo?
- Lá pra baixo.
- O que tem lá embaixo?
- Minha casa.

O menino* , com quase nove anos e morador da comunidade desde o seu nascimento , Rodrigo e eu, estudantes de pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,começamos a nossa caminhada pela Comunidade São Remo. O nosso ponto de partidaera a sede da Alavanca, ONG que busca promover a melhoria de vida dos moradores, a partir de projetos envolvendo, principalmente, as crianças e jovens. O nosso objetivo era conhecer a comunidade por meio do olhar do menino.
Saímos da Alavanca cientes que o menino era nosso “mestre”, foi assim que iniciamos a brincadeira, e como tal, ele poderia nos levar para os lugares que mais ou menos gostava. O menino mora na fronteira entre duas realidades que se conhecem, mas pouco
guardam entre si, semelhanças, ainda que uma, no caso a São Remo, tenha decorrido da construção da outra, a maior e melhor universidade da América Latina, a Universidade de São Paulo. Não era minha primeira vez na comunidade, já havíamos caminhado pelas ruas e vielasem duas oportunidades anteriores no intuito de fazer um reconhecimento do território onde atuaríamos durante a disciplina. Mas dessa vez o olhar seria outro, seria o olhar do afeto e do pertencimento que nos direcionaria para a compreensão das relações presentes naquele espaço, materializando e atribuindo significado aquilo que poderia ser invisível a um estranho.
Enquanto estávamos parados buscando nossa localização no mapa, próximos a nós,passou um grande rato que correu das casas em direção ao bueiro, - Um rato, disse o menino. Ainda que houvesse tranquilidade na sua voz, ele pareceu incomodado. Maslogo, o menino, nos apontou a casa de um amigo e depois, um pouco mais a frente, a casa de uma tia. Eram locais importantes para ele. Na rua de sua casa o movimento era intenso de pessoas e de veículos, uma moto levando dois garotos sem capacete passava incessantemente.
O menino, por sua vez, quis nos apresentar sua casa e dentro dela, as pessoas do seu dia-dia, seus avós. Apenas faltava a mãe, que estava no trabalho e chegaria bem maistarde, já nos alertou.

Quando chegamos em frente da casa, localizada no terceiro pavimento de uma construção cujo o térreo ocupava toda a testada do lote, o menino gritou para o avô que logo apareceu no topo da escada. Ele nos convidou a subir enquanto colocava uma camiseta para nos receber. Entre os dois lances de escadas,havia um patamar intermediário estreito marcando a entrada da casa no 2o pavimento onde morava uma senhora.
Na soleira da porta da entrada da casa, expliquei que queríamos conhecer as pessoas  importantes na vida do menino e, assim, conhecer um pouco melhor a história da São Remo, a partir dos relatos de seus moradores. O avô logo nos convidou a entrar e, em seguida, colocou cadeiras ao redor da mesa e nos pediu para sentar.
Esse primeiro ambiente era a cozinha, cômodo central da casa, tinha uma pia, a geladeira, o fogão e um armário com utensílios e enfeites. Todos os outros cômodos, os dois quartos, o banheiro e a saída para a área de serviço e pequena varanda, davam para a cozinha. Nenhum dos cômodos possuía laje. O avô nos contou que mudou para essa casa há 25 anos, quando foi morar junto com a avó do menino e tiveram uma filha. Mas,originalmente, só existia a cozinha e o banheiro e como é pedreiro, construiu os outros cômodos.

O avô, que já estava com 80 anos, vindo do sul da Bahia, nos contou que chegou na São Remo há 40 anos. Antes, morou no Paraná e em outros bairros de São Paulo. Atualmente aposentado, trabalhou de pedreiro na USP nos anos de 1980, como vigilante na Escola Estadual Clorinda Danti e como serviços gerais no Parque Villa Lobos. Contou que ajudou a intermediar a desocupação de áreas invadidas ao redor da USP. Queria voltar a trabalhar, mas sabe que com a sua idade não arrumaria serviço. A avó, que se juntou a nós pouco tempo depois do início da entrevista, trabalha em um supermercado próximo a comunidade e a mãe de Neto em um banco.
A família usa os espaços da USP para passear com o cachorro da família e disseram que a relação com a universidade é tranquila. O avô pensa que somente sairá de lá quando morrer, mas a placa de “Vende-se esta casa”, presa na fachada da moradia, não esconde a vontade de voltar para a Bahia, “que isso sim que é vida boa”, segundo ele. Apesar do avô ser o “entrevistado”, ele também quis saber de nós o que pensávamos que íamos encontrar quando entramos na favela. Ele queria saber se acreditávamos que a favela era um lugar violento. Nós dissemos que não era isso que passava por nossa cabeça, que tudo parecia bem tranquilo. Nesse momento, ele ressaltou a tranquilidade da vida na comunidade, desde que você “não mexa com as pessoas erradas”, e o respeito que todos têm uns pelos outros. Sem comentar o motivo, o avô relatou que seu outro filho, do primeiro casamento, cuja casa ficava ao lado, estava preso, fez coisa errada, nos disse a avó.
Terminada a entrevista, nos despedimos de todos. Mesmo com os dizeres do avô que a comunidade é tranquila, ele orientou o menino a não nos levar perto do Riacho Doce porque era perigoso, que nos levasse aos lugares que está acostumado a ir. Nos orientou, também, que se alguém nos abordasse, era para dizer o nome dele que todos na comunidade o conheciam.
Ao final, nós tiramos uma foto da família, a avó se arrumou e passou batom, queria sair bonita. Dias depois, fomos levar a foto para eles num porta-retratos. Eles ficaram com o registro da nossa passagem enfeitando a casa.

* Os nomes não serão revelados para preservar o anonimato das pessoas entrevistadas.

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