Relato das visitas à favela São Remo

Por Ana Maria Ferreira Haddad

As primeiras ocupações da favela São Remo se relacionam ao surgimento e crescimento do
Campus da USP, na zona oeste da cidade de São Paulo. Aproximadamente na década de 60, a
instituição passa a receber fortes investimentos em infraestrutura e muitos de seus trabalhadores,
advindos de outras regiões brasileiras e buscando por um local de moradia, se estabelecem
imediatamente ao lado do terreno da universidade.
Entendendo a significativa proximidade física e histórica entre a favela e a USP, julgamos mais do

que relevante fazer da comunidade vizinha, objeto de nossa pesquisa para a disciplina de pós-
graduação “Intervenções em espaços informais das cidades brasileiras contemporâneas”. As

impressões iniciais da São Remo foram se formando a partir do documentário produzido pela
própria faculdade de arquitetura, em que os conflitos entre a USP e os moradores do bairro se
mostravam complexos justamente por grande parte dos funcionários terceirizados da universidade
viverem na favela ao lado.
Na primeira visita, a breve caminhada até o muro, a passagem pela catraca e pelos vigias da USP
marcaram uma cena da convivência verdadeiramente paradoxal. Enquanto deixávamos, quase
distraídos, o terreno da universidade, a entrada da favela – marcada por um paredão, de certa
maneira impressionava.
Em particular, não liguei diretamente o trajeto percorrido ao mapa que há pouco havíamos visto
em sala de aula, mas logo chegamos à Alavanca. Era uma via larga, aparentando ser importante
para aquele bairro. Paramos em frente a um campo de futebol enorme – “de medidas oficiais”,
depois confirmaram os meninos do projeto educacional.
Subimos três ou quatro lances de uma escada externa, de metal – estrutura que veríamos mais
adiante repetidas vezes, nas mais estreitas ruas ou vias principais. Ainda que a favela fosse um caso
atípico de “não urbanização”, havia ganhado significativa densidade com os anos.
A ONG nos foi apresentada por Reginaldo, que costurava a história do projeto ao da própria São
Remo. De 2005 a 2010, surge e funciona a organização, a partir de uma parceria entre o Brasil e
Alemanha, firmada por intermédio de alunos intercambistas em São Paulo. No entanto, os 120 mil
reais doados pelos estrangeiros permitiram a ONG a funcionar somente até 2014, que com o fim
da verba, viu também sua ligeira desarticulação.
A Alavanca parecia estar “voltando” naquele momento, parecia estar outra vez a fim de abrir suas
portas, abrigar novos trabalhos. Nós, da USP, por outro lado, estávamos ali justamente para
conhecer a trajetória da favela através das memórias dos são remanos, e pensamos que, de algum
modo, poderíamos fazer de nossa investigação, uma das atividades da organização.
Acredito que desde o primeiro contato, antes mesmo da pesquisa se estabelecer ou conhecermos
os caminhos pelos quais percorreríamos no semestre, entendemos que era preciso buscar na São

Remo elementos que revelassem além da história registrada esparsamente nos jornais. Era preciso
compreender, ainda que superficialmente, as interações humanas ali existentes: os conflitos e
tensões urbanas e sociais.
Pouco a pouco, assim, a estrutura do trabalho foi se desenhando.
Nesta conversa inicial, Reginaldo nos comentou alguns dos projetos já desenvolvidos na Alavanca:
desde o contato com a FAU Social, até a existência de oficinas com a cartunista Laerte Coutinho.
Ele destaca que a ONG já foi protagonista na comunidade, mas que atualmente, como dito,
buscam por voluntários que possam abraçar a iniciativa.
O presidente da organização, sem mapa ou desenhos, foi introduzindo o roteiro da caminhada que
iria se seguir. Falou da São Remo, do Riacho – que seria a parte mais precária, dos Sem Terra, e do
Buracanã. Separou em áreas menores o que havíamos entendido, a priori, como um só bairro.
Destacou que os donos de casas alugadas são contra a regularização, tema do último contato entre
USP, CDHU e Prefeitura. O imbróglio entre a universidade e a favela é uma discussão antiga.
Reginaldo diz que o reitor atual tentou se aproximar burocraticamente da São Remo, mas a relação
entre os vizinhos se mostra paradoxal nas mais variadas instâncias.
Trata-se da complexidade existente na universidade como instituição, como agrupamento de
diversos departamentos, como uma série de projetos de pesquisa mais ou menos envolvidos com
as ciências humanas, e presente também na pluralidade de indivíduos, em conflito ou consonância
com a enorme variedade de moradores da favela São Remo.
Ao fim da breve conversa, caminhamos por boa parte da São Remo, mais especificamente até o
Riacho Doce. Pudemos identificar os principais vizinhos, avenidas "de fronteira", como o Rodão
atacadista, e até o CAPSI, que é quase um equipamento fantasma.
Passamos "em bando" pelas vielas da São Remo. Víamos as pessoas, fotografávamos, mas, ainda
que guiados por um morador, não adentramos verdadeiramente no bairro.
A segunda visita da turma à Alavanca foi para re-conhecer, literalmente, o local. Divididos em dois
grupos, uma parte dos alunos buscou em jornais locais as notícias referentes à São Remo, e a
outra, com a ajuda das crianças presentes na ONG, pode identificar na vista aérea do bairro não
somente os principais equipamentos públicos e casas das famílias da meninada ali presente, mas
pode vislumbrar os primeiros passos em direção a uma compreensão um pouco mais complexa e
pessoal da favela.
“A igreja que a minha avó vai”, “a primeira casa”, “a Alavanca tá aqui, ó!”, “nessa rua tem o fluxo,
não dá pra dormir”, “a USP é pra cá!”. As referências que construímos nesta rápida oficina nos
guiaram às vivências das aulas seguintes. Entendemos que era preciso chegar a estes lugares e a
estas pessoas para adentrar às primeiras e principais memórias da São Remo.
A terceira ida à favela foi comandada pelo “caça ao tesouro” junto aos meninos da ONG, e no
mesmo formato aconteceu a quarta visita, em que eu e Isabella pudemos acompanhar um são
paulino e outro – por chute – gremista bem espoletas.
Chegamos à casa da filha de uma das primeiras moradoras da São Remo. O quarto-sala estava
cheio de fantasias de carnaval, que obviamente não pude fotografar. As paredes tinham também

murais repletos de rostos de crianças – que dona Flor* dizia conhecer, ver sempre pelas vielas.
“Muitos já são pais, essas festas a gente faz há muitos anos!”.
A costureira contou sua chegada à comunidade, nos fez imaginar os lugares onde morou, onde
tirou fotos da filha ainda pequena. “Quando minha mãe mudou aqui não tinha nada. Aqui era tudo
aterro.” “Eu tenho foto aqui que - não tem a padaria ali? - então, do lado de cá era tudo aterro.
Tem a minha menina pequenininha ali. Ali você via a avenida lá embaixo.”.
A luta pela água e pela luz, junto ao companheiro Luís Viotti faz parte de seu relato, assim como a
mudança das alturas das casas, da largura das ruas, que “com o tempo foi estreitando”.
Estreitamento este que não aconteceu entre a USP e a favela em que passávamos a tarde. Dona
Flor reconhece que depois “alguns aspectos, acontecimentos desagradáveis”, “houve uma certa
divisão”. Os muros, as catracas deixaram os são remanos “um pouco isolados”.
As boas vindas de dona Flor em oposição ao notável retraimento da USP em relação aos seus
vizinhos ilustra as esferas institucionais e pessoais por trás das problemáticas de segregação social.
As tensões em suas mais diversas escalas, antes quase hipóteses, no fim do semestre se mostram
intensamente.
Os paradoxos urbanos reiterados no breve mergulho a São Remo foram expressos desde as falas
breves, às histórias narradas sobre muito tempo atrás. Foram sentidos da primeira à última
caminhada.
A conversa vai se encerrando, e nos despedimos. Antes de deixar a salinha cheia de paetês e
fantasias, pensamos um pouco no caminho de volta, pois os meninos-guias já não nos esperam. O
mapa mental agora vem a mente com mais facilidade que no primeiro percurso em grupo.
Ao sair da viela, e em seguida da rua intermediária a caminho da avenida, nos mandam guardar a
câmera. Eu guardo, e seguimos caminhando em direção à Alavanca.
Tomamos fôlego. Muro. Catraca. USP.

*O nome da entrevistada foi trocado a fim de que não seja possível o seu reconhecimento.

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