Relato de visita guiada na São Remo – São Paulo, 06 de outubro de 2017

Por Elizabeth Othon de Souza e Livia Salles de Godoy

A visita do dia se iniciou como as outras na sede do Projeto Alavanca, onde nos reunimos e verificamos a quantidade de crianças presentes para a atividade. Após a contagem de alunos, câmeras e crianças, partimos em duplas para acompanhar os pequenos numa grande aventura de caça aos tesouros da São Remo. A ideia era cada criança ser capitã de seu navio que nos levaria pelos mares de ladeiras "são remanas" em busca dos lugares do cotidiano dos pequenos. A criança nos escolheu depois de muito pensar a respeito, mas logo seguimos orientados por nosso capitão.

A primeira parada foi no campinho ao lado da praça, onde ele nos contou que vai para brincar, mas não para jogar futebol pois ele prefere desenhar. A praça é um espaço livre aparentemente residual, com alguns bancos e estruturas de brincar com um balanço e outros brinquedos quebrados tomados pela natureza, se situa ao lado do grande campo de futebol situado na rua da sede do Projeto Alavanca, próximo ao portão principal que conecta a São Remo e a USP. De lá conseguimos ver o campo de futebol e a rua que segue em um nível abaixo.

Saindo da praça seguimos a descida em direção à casa dele. No final da rua, viramos à esquerda na rua que possui casas de um lado e muros do outro. Ao longo da rua pudemos ver diversos carros estacionados, uma quantidade considerável de árvores de grande porte e as calçadas do lado do muro ocupadas por trailers de comerciantes. Estávamos na fronteira entre a São Remo e a USP. Chegamos então na casa onde mora com sua tia. O menino nos conta que mora na São Remo desde que nasceu (na maternidade do HU), seu irmão mais velho nasceu em outro lugar, mas já não está mais na São Remo, tampouco neste plano, assim como sua mãe. Chegando em sua casa logo sua tia vem responder o chamado do sobrinho que vem desde longe falando baixinho e introvertido. Conversamos com sua tia, explicamos de onde viemos e as intenções da visita, e ela logo diz que o menino não conhece muito da São Remo, apenas os caminhos que faz para a escola, para o Alavanca, para as aulas de roller na USP e quando vai ao mercado, pois já tem idade para ajudá-la. Ela se despede e deixa o recado: “não vai por onde você não costuma ir, vai pelos seus caminhos de sempre”.

Depois do aviso, seguimos a rua para conhecer o mercadinho "Kuazetudo", onde segundo ele “tem quase tudo, ué!”. Descemos a rua logo atrás de um grupo de jovens que faziam manobras radicais empinando suas bicicletas, com o aroma da erva subindo no ar e o arrocha como trilha sonora do passeio. Chegamos então a um cruzamento entre três vias, local com comércio abundante e grande fluxo de pessoas nas calçadas, nas ruas e paradas na porta de casa. Os olhares estão presentes, e logo nos perguntam o que fazemos parados ali no meio do cruzamento olhando um mapa, com câmera na mão, um gringo a tiracolo e uma das crianças da comunidade. Respondemos as motivações e logo a curiosidade se aquieta, e a conversa com o outro companheiro continua, enquanto a lata de cerveja se esvazia.

Registramos os arredores, a fachada do mercadinho (que tem uma loja de presentes homônima), respondemos perguntas, passamos por uma banca de frutas e seguimos até a padaria. Para chegar lá, Caio nos guia por uma viela que passaria despercebida pelos que não tem os olhos acostumados a encontrar uma passagem entre as casas de vários níveis. Saímos então do espaço do cruzamento: uma centralidade, a paisagem ampla, onde se vê o horizonte de prédios e pontos focais da São Remo, paredes com revestimentos novos e cores vibrantes, movimento, som de moto, som de carro, som do arrocha vindo do bar. Para cruzar uma das quadras passamos por uma viela, o passo se torna mais cuidadoso pois os percalços no caminho aumentam, em alguns pontos duvidamos se é possível mesmo passar entre as paredes sem reboco, quase como andar por um labirinto, cruzamos com outros passantes, subimos degraus, desviamos de canos que sobem e seguem na horizontal, ao olhar pra cima vemos um céu recortado por telhados de diversos materiais e cores, o sol abrindo espaço por onde dá, assim como as casas que se amontoam.

Chegar ao fim da viela é como atravessar um portal de volta à uma das avenidas principais, saindo do universo dos sons do cotidiano, o olhar se expande e o cheiro de pão se mistura com o cheiro que vem dos ralos e dos líquidos que escorrem pelas sarjetas. Segundo nosso menino-guia ali é a casa do pão mais gostoso da São Remo.

Depois de conhecermos a padaria fomos conhecer outro espaço de brincar das crianças da São Remo. Caio nos guiou até o portão de acesso à USP, atravessamos e caminhamos ao longo do muro até chegar no morro gramado onde as crianças brincam escorregando em tábuas de madeira. O mesmo local possui um buraco no muro, segundo ele é mais fácil ir por ali do que dar a volta pelo portão. Como não estávamos dispostas a nos aventurar demais, resolvemos voltar pelo portão. Já passava das 15h e o calor apertava, fomos então conhecer a sorveteria. Chegamos na hora da limpeza, a dona da sorveteria terminava de passar pano no salão e depois de nos atender conversamos brevemente sobre sua história na São Remo. Ela veio de Pernambuco e chegou na São Remo há mais de 40 anos, além do seu barraco dava pra contar mais “uns 6 lá pra cima”. Hoje mora no piso em cima da sorveteria-bar, segundo ela a casa vai até o outro lado da rua, o comércio fica no térreo, a casa dela no primeiro andar e a casa das filhas no segundo andar. Terminamos o sorvete conversando sobre amenidades, e ela perguntou se no projeto que estávamos participando tinha curso de crochet, e comentou dos altos gastos com medicamentos para tratar a artrite.

Antes de terminarmos a caça ao tesouro, faltava o último lugar: a quadra de esportes, próxima da sede do Alavanca. A vida acontece nos arredores da quadra, movimentados pela barraquinha de lanches onde adolescentes param para tomar um açaí, alguns homens jogam cartas, jovens se encontram para conversar nos bancos, algumas crianças jogam futebol enquanto outras brincam no parquinho. Do parquinho podemos acessar a abertura no muro da USP, um atalho para o morro de brincar de Caio. Do parquinho também vemos a região de garagens do alto, uma das casas possui grande volume de entulho na laje e entre sacos de lixo e sacos de rafia vimos duas crianças curiosas com o movimento do parquinho.

O sol começa a abaixar e voltamos para reencontrar os outros colegas, passamos pelo futebol na rua que é impedido pela passagem de carros: é horário de buscar as crianças na escola. Finalizamos as andanças guiadas compartilhando as histórias, bolo e guaraná na sede do Alavanca. A volta para a USP é no contra-fluxo do movimento intenso de crianças voltando da escola com seus tutores, brincadeiras que continuam desde a escola. Passamos pelo portão e o silêncio predomina na passagem entre a São Remo e a USP, uma área cinza de transição a um outro universo.

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